Canoas

Canoas é uma cidade na região metropolitana de Porto Alegre, mundialmente famosa por ser a capital do Xis (Santa Maria nem é gente).
Quando eu nasci, meus pais já moravam lá há pouco mais de um ano. Foi uma das primeiras casas daquele loteamento, tão novo que as casas nem tinham número ainda e cada um escolhia o número que queria. Isso causou problemas: os carteiros e entregadores sofriam pra encontrar o endereço certo (pois os números das casas não estavam em ordem), o que fez com que a prefeitura (depois de vários anos) acabasse com a putaria e designasse números distribuídos de maneira coerente. Era a coisa certa a fazer, mas ainda ia levar um tempo até que todos os cadastros fossem atualizados, então as casas tinham dois números; o novo e o velho. Alguns moradores deixavam os dois, o que aumentava ainda mais a confusão. Depois de alguns anos, o bom-senso prevaleceu e as pessoas tiraram o "número antigo".
O loteamento era tão novo que a nossa casa era praticamente a única da rua. Do nosso quintal dava pra ver as poucas casas já construídas nas ruas paralelas e o resto era um campo. A nossa rua não tinha saída, e então o tráfego era somente das poucas pessoas que moravam ali. Brincar na rua era seguro. O portão da rua devia ter 1 metro de altura, e ficava sempre destrancado. O carteiro era muito simpático e entregava a correspondência pessoalmente, na porta da sala. Um dia mudou o carteiro e ele bateu palmas na frente da casa. Quando avisamos que ele podia entrar, ele recusou, dizendo que viu que "tinha um cachorro grande deitado no pátio". Era só o nosso gato preto, que nós chamávamos de Preto. Era um gato de 8kg, que media exatamente 1 metro no nariz até a ponta do rabo. Foi um erro honesto do carteiro. O Preto costumava espantar os cães incautos que entravam no pátio, mesmo eles sendo várias vezes maiores do que ele. Talvez o carteiro soubesse disso e preferiu justificar a precaução com uma meia-verdade. Nunca saberemos. Com o tempo, a rua começou a ficar cheia de casas, e eu comecei a ter amigos. Eu sempre estudei de manhã, então as tardes eram divididas entre assistir a Sessão da Tarde (a televisão só tinha 5 canais) e ir brincar na rua. O procedimento padrão era avisar a minha mãe onde eu estava indo e ela dizia que horas era pra voltar.
Criaram um bairro novo, separado do nosso por um campo. Vários prédios cheios de "moradias populares". Anos 80, Plano Cruzado, inflação de 250% ao ano, tudo dando errado pra quem precisava de uma casa pra ter um pouco de dignidade. As pessoas se revoltaram e invadiram os conjuntos habitacionais, terminando o que faltava e ocupando as casas e apartamentos que haviam sido prometidos. Depois de 6 meses de conflito, finalmente as partes chegaram em um acordo e os quase 6 mil imóveis foram aos poucos sendo legalizados e recebendo água, luz e esgoto. Hoje é o bairro mais populoso de Canoas. Infelizmente, até hoje é um bairro estigmatizado. Foi um choque para aquelas famílias de classe média terem gente "pobre" morando tão perto. O portão baixinho ganhou um cadeado. Depois foi substituído por um mais alto. Uma noite ouvimos alguém no nosso pátio mexendo nas coisas dentro da garagem e fugindo por entre as grades. As grades foram substituídas por um muro ainda mais alto, com direito a arame farpado. O vizinho da frente teve a casa invadida enquanto a família dormia. Apanhou dos criminosos (bem-feito. Um dia eu conto o motivo dessa minha reação) e levaram um monte de coisas. Outro vizinho, advogado, teve a casa fuzilada. Não sei o motivo, só sei que ele se mudou no dia seguinte.
Por fora, a minha ex-casa mudou várias vezes. Sempre pra pior. Mais agressiva, mas "segura", mais feia. Por dentro também mudou bastante: minha mãe tinha uma obsessão com obra, então vivíamos passando por expansões, mudança de piso, retirada de paredes, troca de telhado, etc. mas ainda me sentia em casa. Era um lar em constante atualização, mas era o meu lar. Quando ela morreu isso tudo mudou: aquela casa agora era um museu. As estantes com os livros dela. A poltrona onde ela sentava todos os dias para ler ou para tricotar. A cozinha onde ela me ensinou tanta coisa. Aquela casa da minha infância não tinha mais a parreira no quintal, não tinha mais as dezenas de gatos, não tinha o murinho branco simpático decorativo: só tinha lembranças. Quando vendemos a casa, a arquiteta que a comprou praticamente demoliu tudo, deixando só a estrutura. Eu vi essa última transformação, esta transição entre o que já não era mais a casa onde eu morei mas ainda não era o sonho de quem ia morar. Foi triste ver a casa onde nasci e cresci ser destruída, mas de certa forma foi uma catarse. As lembranças agora estão só comigo, seguras.
De vez em quando me dá curiosidade de ver como ficou a casa. Quem sabe um dia, quando for visitar o Brasil, eu passe lá e toque a campainha.

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